terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Nascimento do Meu Irmão


Era Outono, em pleno Alentejo. se sentia o cheiro das pedras molhadas, pelos primeiros chuviscos da estação, naquelas ruas em que a casas pouco distavam umas das outras. Em casa da minha avó paterna, uma das mais conhecidas merceeiras da Vila, havia sempre um corrupio de vizinhas que precisavam de alguma coisa, de que se haviam esquecido aquando do avio. O meu avô paterno, latoeiro de profissão, passava os dias e a maior parte dos serões na sua oficina. Arranjava e remendava toda a espécie de utensílios em folha. Lembro-me dele com a tesoura na mão a cortar os moldes das peças que ia fazer, depois a dar-lhes forma com instrumentos dos quais nem sequer sei o nome e, o mais característico, o cheiro do maçarico quente na chapa a derreter a solda para unir as diversas partes da peça. A hora de jantar era sagrada. Todos os dias à mesma hora o meu avô ia sentar-se à mesa, estivesse o jantar pronto ou não. Era o primeiro a servir-se e a levantar-se da mesa, demorasse o tempo que demorasse. Ninguém se levantava sem que ele saísse primeiro. Eu que, para além de comer pouco, comia depressa, achava que o meu avô era muito comilão. Demorava muito tempo… Depois a minha mãe e a minha avó começavam a tratar do resto da lida, enquanto conversavam. Enquanto que eu, no meio daquele cochichar, encostada à mesa me deixava dormir e alguém me levava para a minha cama, de onde só me levantava na manhã seguinte.

Naquela noite, alguma coisa me acordou. Havia muita agitação dentro de casa. Falava-se em voz alta. Estremunhada pelo sono e assustada, por não estar a perceber o que estava a passar, devo ter chamado a minha mãe. A minha avó paterna apareceu à porta do meu quartinho e veio sentar-se junto da cabeceira da minha cama, tentando acalmar-me. Ouvia a voz da minha avó materna e da minha tia-avó no quarto ao lado. Eu mantinha-me, muito encolhida, encostada à minha avó paterna que, entretanto, tinha posto o seu braço forte em volta dos meus ombros. Subitamente ouvi a minha mãe choramingar. Interroguei a minha avó sobre o que se estava a passar. As primeiras respostas dela, às minhas perguntas, devem ter sido qualquer coisa como: “Não é nada, Filha, não te preocupes. Dorme”. Mas eu nunca mais preguei olho. Aquilo era muita agitação, para quem tinha tido uma existência tão calma e sem perturbações. Um grito! Era a minha mãe de novo… “Avó, o que é que a mãe tem?”. A resposta não se fez esperar: “Sabes, Filha, a tua mãe está com dores de dentes. Tu sabes como é!”. Pois, eu realmente sabia. Então, como a minha avó não tomava qualquer atitude em relação ao assunto, perguntei-lhe “Avó, já lhe deram o meu remédio dos dentes?”. A minha avó tranquilizou-me dizendo “Sim. E também lhe demos o teu remédio da barriga. Mas temos que ter paciência, porque demora um bocadinho a passar. Tu sabes como é.” Exactamente, uma rapariga experiente de quatro anos e meio, sabia perfeitamente que as dores de barriga e as dores de dentes demoram muito tempo a passar. A agitação continuava, correrias de um lado para o outro, gemidos da minha mãe e, de vez em quando, mais um grito. Era uma noite que nunca mais tinha fim.

Subitamente, ouvi um choro diferente. Fiquei muito agitada, porque percebi que não era a minha mãe. Sem dizer palavra olhei para a minha avó, com ar de quem questiona o que se está a passar. A minha avó voltou-se para mim, colocou o dedo indicador direito sobre o nariz e a boca e disse: “Shiu. Não faças barulho. Espera um bocadinho”. E ali fiquei à espera do que iria passar-se a seguir, bem encolhida, encostada à minha avó. Depois vi a porta do meu quarto abrir-se devagarinho. Era a minha avó materna com qualquer coisa nos braços. Mas aquela “coisa” mexia-se muito e fazia uns barulhos esquisitos. A minha avó paterna içou-me da cama e fez-me ficar de joelhos. A minha avó materna aproximou-se de mim e mostrando-me a “coisa” que trazia nos braços, disse-me: “Olha, Zézinha, o teu mano Francisco já chegou! Queres vê-lo?”. Devo ter abanado a cabeça a dizer que sim, porque não me lembro de ter dito nada até o ver. “Oh avó, mas ele está todo sujo…”. “Ele acabou de chegar e fez uma viagem muito grande. Agora vai tomar um banhinho. Depois, logo vês como ele fica bonito”. Devo ter ficado muito excitada com todas aquelas novidades. Um mano! Eu estava sempre a dizer à minha mãe que queria ter um mano e ela tinha mandado vir um pr’a mim. Não cabia em mim de contente. No meio de toda aquela agitação, a minha imaginação deve ter andado a milhares de quilómetros hora, porque voltei-me para as minhas avós e disse-lhes: “Então, quando ouvi bater na janela, foi o avião a trazer o meu irmão. Eu ouvi o meu mano Francisco chegar!” Aquilo é que tinha sido uma participação importante no processo de chegada do meu irmão...

Estávamos na madrugada do dia onze de Outubro do ano de mil novecentos e sessenta e quatro. Nasceu às seis horas e quinze minutos. A partir desse momento deixei de ser filha única.


Mª J. C. Rosário - 1ºBC



8 comentários:

  1. Texto muito bonito, uma história que prende e cativa. Parabéns.
    Eu bem sei que lhe disse para publicar em letra pequena, uma forma de fazer esquecer que o texto é comprido. No entanto, da maneira como está temo que o tamanho da letra desincentive a atenção dos mais preguiçosos... o que seria uma pena.
    Profª Gabriela

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  2. Adorei a forma como a Maria José conseguiu cativar o leitor e manter o suspense até ao fim. Achei divertido o alívio cómico do comentário inocente, mas puro, de criança ao ver "aquela coisa" pela primeira vez...lol
    Boa, MJ, parabéns!
    Ana Lézinho

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  3. Eu já li tanto (por obrigação e por prazer) que, se não fico presa logo de início, depressa deixo para trás. Neste texto, fiquei presa até ao fim e continuaria, se mais houvesse. Num retrato tão breve, descreve muito bem a vivência da infância - não apenas o nascimento do irmão, mas muitos outros aspectos. Até parece que sentimos o cheiro da chuva! Muitos Parabéns!
    Patrícia Jorge

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  4. PARABÉNS ZEZINHA!
    Adorei!
    Uma história que me provoca um misto emoções... saudades, alegria... que comove e ao mesmo tempo é engraçada.
    Devias pensar em escrever um livro.
    Já tens uma fã!!!
    Beijinho

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  5. Não sei se isto é o principio de uma longa história que a MJ nos vai contar. Se o for, deixa-nos com muia àgua na boca. Gostaria de ver como é que nos irá contar a relação vindoura com este mano tão desejado e pedido. Engraçado ter sido um avião e não a cegonha que o trouxe, bela visão de futuro e modernização. Belo encadeamento para um pouco de suspense.

    Força MJ

    Rogério Tavares, um teu amigo.

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  6. Que história deliciosa, especialmente para quem foi mãe há pouco tempo.É interessante perceber o que sentem as outras pessoas em relação a um acontecimento tão marcante como um nascimento.
    Tudo de bom, bons estudos.
    Bj
    Carla Alves

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  7. Quem resiste a histórias de infância passadas na velha aldeia?
    O cenário irresistível e uma escrita plausível tornam a leitura apetecível.
    No meio de todos este "iveis", fica o meu desejo de bons estudos.
    Fernando Faria

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  8. Fiquei bastante emocionada, com esta breve história de infância, Maria, que tão descritiva e até poética o é, pela pureza que transmite.
    Vai em frente, MJ!
    Quem sabe não existirá em ti uma potencial escritora?
    Célia Moura

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